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A caligrafia mais torta ou mais redondinha, mais aprumada ou mais inclinada. Palavras escritas a caneta preta ou azul, a lápis, à máquina. Pouco importa. O importante é o que se escreve. Selos pintados com figuras, paisagens, bichos, ou personagens importantes. Selos carregados de simbolismo. Símbolos de um país. Pedacinhos de orgulho, espelhos de uma nação. Ou veículos de subliminar propaganda política. Carimbos esborratados, incompletos, ou cravados com cuidado, certinhos e direitinhos. Carimbos de várias cores e feitios. Indicações estampadas em quadrados ou retângulos de papel. Em cartas com destinos traçados. 

Remetentes, destinatários, moradas. Pessoas. Tantas pessoas. Gente que escreve. Gente que recebe. Gente que responde. O cheiro da escrita, o cheiro de quem chega através de palavras escritas. O cheiro que abafa ausências. Envelopes que chegam à mão, fechados para serem rasgados com mais ou menos cuidado. Com maior ou menor intensidade. Envelopes que viajam, que voam, que atravessam oceanos e países. A proximidade que se sente nessas cartas que são objetos de lembranças, guardiãs de memórias, genuínos tesouros. De vidas. De tantas vidas. Saudades. Emoções. Desabafos. Amores. Desamores. Esperança. Família. Amigos. Confissões. Ordens.

Como comunicamos hoje? Estamos mais perto ou mais distantes uns dos outros? As novas tecnologias ajudam ou atrapalham? Como guardamos as nossas memórias? Como lembramos o passado? Como recordamos os outros? Será possível congelar o tempo num pedaço de papel? Qual o impacto dos modernos instrumentos de escrita? Alexandra de Pinho, artista plástica, segura-nos pela mão e conduz-nos numa viagem pelo tempo, pela escrita, pelo passado que se torna tão presente. Como se atravessássemos um poema que nos surpreende por assistirmos a tantas vidas em cartas que, não sendo nossas, nos contam uma parte importante da nossa própria história. Como um delicioso regresso às origens.

Com linhas e agulhas, Alexandra de Pinho cose nomes, endereços, letras, palavras, carimbos, selos. Torna-os próximos de nós. Usa aguarelas e colagens. Decalca envelopes que lhe depositaram nas mãos. Com respeito e delicadeza. As cartas continuam misteriosas, como devem ser, sem revelar o que têm dentro, sem desvendar mensagens escritas numa folha ou em páginas que – imaginamos nós - relatam vidas, amores, desamores, burocracias, expedientes, avisos, lembranças. E a imaginação pode funcionar a qualquer momento, sempre que quiser, para inventar o que quer ler dentro desses envelopes de vários tamanhos e proveniências. Envelopes carregados de vida. De tantas vidas.

A artista plástica resgata essa forma de escrita, recuperando com a sua arte uma arte que foi perdendo fôlego ao longo dos tempos. As cartas são autênticas, circularam, marcaram vidas, carregadas de histórias. Como testemunhas de encontros, repositórios de emoções, ou meramente expedientes para cumprir. Alexandra de Pinho mostra-nos cartas por fora, chamando-nos para um mundo, que está tão perto e tão longe, lembrando-nos que esses instrumentos de escrita são também representações das nossas relações sociais.

Os conteúdos permanecem secretos. Os referentes são autênticos. As cartas existiram. O interesse não é meramente plástico. Nas suas mãos, estão histórias de vidas. E Alexandra de Pinho torna-nos testemunhas de uma escrita que apesar de não ser tão antiga, parece tão arredada de um quotidiano moderno, apressado, sem tempo para mastigar palavras, sem paciência para juntar letras pelo próprio punho. A artista plástica convoca as máquinas de escrever, instrumentos de escrita, enquadrando-as nesta narrativa artística através de uma abordagem mais dinâmica e contemporânea. Com pedaços de tecidos constrói estes mecanismos que tornam possível uma forma de comunicar. E nós temos o privilégio de nos tornamos cúmplices desses objetos como, se de alguma forma, também nos pertencessem. Como se nos tivessem coisas para contar.  

Um aerograma do Movimento Nacional Feminino, selos de Macau, da Guiné, de Timor. Cartas que iam e vinham da metrópole. Cartas de empresas, cartas de negócios, cartas de instituições bancárias. Cartas com selos em cima, em baixo. Ao alto, ao baixo. Cartas de Fernando Pessoa, cartas de Frida Khalo, cartas de Júlio Dinis. Um bilhete-postal. Cartas prioritárias. Cartas que sobrevoaram países. Cartas. Simplesmente cartas. Ou tão imensamente cartas.

 

Sara Dias Oliveira

Jornalista 

 

Cartas, esses tesouros que guardam memória 
Letters, these treasures that keep memory
Cartas, esses tesouros que guardam memória 
Letters, these treasures that keep memory

ALEXANDRA DE PINHO - TEXTIL ARTIST

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