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Narrativa de Fugas: o Corpus umbilicus na cesura do tempo 

A exposição Narrativas de fuga permite-nos situar num horizonte humano marcado por uma certa tensão entre a paixão da criatividade e a razão mecânica da procura pelo conhecimento, ainda que uma não exclua a outra. As obras “vinculum amoris” não são apenas a ilustração da asserção anterior, são também o relato da dialéctica interior que marca o per-curso do humano no mundo. Uma tensão que é assim narração e que só é passível de ser transmitida no gesto aprimorado de um estilo e de uma técnica que a artista plástica nos habituou.

O seu desprendimento artístico resultante de um trabalho incessante (diga-se, habilidosamente continuado), permite-lhe hoje, situar-se num reconhecimento público da sua obra, que só a coerência e a inteligência de um olhar estético apurado poderia entregar. A sua técnica de uso de tecidos, de sobreposição de tecidos que consolidam em muitos casos a estrutura do desenho, aliado ao uso de resina de poliéster, permite à artista re-criar a figuração. O desenho estrutura a figuração, devendo registar-se a materialidade física dos traços dados por linhas ou pedaços de tecidos cosidos e colados sobre a tela. O uso da cor é em Alexandra de Pinho, fornecido pelos acrílicos e pelas cores presentes nos tecidos; uma perfeita integração de luminosidade e harmonia pictórica nos/dos elementos que a compõem.

Uma narração é sempre uma exposição de factos ou sequência de eventos, e como tal, as narrativas de fuga de Alexandra de Pinho sugerem uma intersecção entre o banal e o sublime que acontece quando o corpo pretende reclamar o lugar de origem e portanto a sua singularidade, e evadir-se para fundir-se no corpus humanus e portanto submeter-se à censura. “Graphidis Scientia” é essa busca de uma nova geografia do corpo, de uma nova cartografia cujo centro é o umbigo. Um cartografia visual, estética, ética que propõe novos horizontes. “Homo umbilicus” exalta o lugar de sensações primeiras e dispõe-se como centro de reflexão ontológica a partir do qual se torna visível a pensabilidade da origem. Assim em “Objectos perdidos” reclama-se a orientação crítica do espaço corporal envolvente ao ventre, com a presença simbólica e antagónica de objectos que aparentemente rivalizam com a integridade do sujeito. Não são tanto objectos perdidos, antes perspectivas objectivas do corpo cesurado.

Esta narrativa de Alexandra de Pinho pelo mundo humano, sugere a erupção como uma libertação impetuosa do que estava encerrado, como a quebra, o rasgo, a explosão, a fuga como possibilidade configuradora de um curso. Em música, a fuga é uma forma de composição contrapontística, em que a imitação sucessiva ao longo do discurso musical conduz a um acabamento exploratório de todas as vozes. Aqui, a fuga é sobretudo a exaltação da fugacidade do humano, a velocidade e transitoriedade do que se ganha e perde no decurso da vida, o sentido de uma direcção. A fuga aqui exige uma narração que é como se disse anteriormente uma direcção, que é um descobrimento, um desvelamento da relevância de algo que se deixa escapar, como o exacto momento de “eruptio”, ou como o instante do corte umbilical. “Fractus par” é a exaltação máxima da narrativa possível de uma fuga que explodiu num tempo e num espaço reservado ao encontro, retomando o trágico traço que traça o destino final. Em “Luminis” abre-se para mundos que exigem clareza, para a imposição de clarividência da origem que permite desenhar futuros.

O apurado sentido crítico da artista plástica deixa perceber no entanto, um outro caminho à narratividade, a censura como figura latente ao discurso contemporâneo. Entre o corpo e a censura, a sociedade institui paradigmas de vigilância e controlo diagnosticando novos lugares de narração. Alexandra de Pinho não quer exaltar a censura mas antes a cesura, isto é, a artista quer celebrar a incisão como marca constituinte e fundadora do mundo humano (até porque o corte umbilical é o resultado de uma cesura inevitável que lança no mundo). Se a arte se parece expandir na totalidade do real, salvar um fragmento do real, é salvar o real. A artista sabe-o e por isso encontramos em muitos lugares este aspecto da sua reflexão. E porque a arte também é história, a artista impõe-se estar em sintonia com o seu tempo, desbravando perspectivas e recriando lugares, narrativas de fugas, em direcção ao real, porque uma fuga é sempre uma direcção, um sentido, uma possibilidade, e devemos agradecer à Alexandra de Pinho por nos recordar semelhante narratividade.



Paulo Alexandre e Castro Cardoso, é investigador do Centro de Filosofia da Univ. de Lisboa e membro da direcção da Soc. Port. de Ciências Cognitivas. Autor e co-autor de diversas obras. Mais info: www.pauloalexandreecastro.webs.com

 

ALEXANDRA DE PINHO - TEXTIL ARTIST

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