“O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico. O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical, como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica.”[1] Quem o diz é Roland Barthes (1915-1980), um filósofo e crítico francês que nos ensinou, entre muitas outras coisas, que a leitura e a escrita pertencem ao domínio do prazer. Jouissance — esta é palavra escolhida por Barthes. É de ambígua tradução. Porque o encontro com texto não é apenas intelectual, é físico também. Trata-se de algo sensual. Lê-se e escreve-se com pele, músculos, sinapses e hormonas. E, por isso, há quem prefira a palavra “gozo”, ou, optando uma formulação mais delicada, “fruição”. O que importa reter: as palavras não são lidas só com os olhos, nem escritas só com as mãos. É todo o corpo que aqui se convoca. Há desejo neste encontro.
É desse enlace que falam, aos meus olhos, os trabalhos de Alexandra de Pinho aqui reunidos. No lugar da escrita que nos é apresentado, as máquinas de escrever estão omnipresentes. Por vezes, vêm aos pares e dialogam entre si. São testemunhas de páginas em branco, rasuras, falta de inspiração, formidáveis combinações de palavras, pausas imprevistas e emoções que acompanham um ponto final. Assim são as máquinas literárias, como lhes chama a artista. É a partir destas extensões do corpo humano que encontramos textos de fruição, escritos originalmente por autores tão díspares como o compositor Jorge Palma e a escritora Maria Gabriela Llansol. São fragmentos de discursos que, tanto no acto da escrita como no da leitura, transpiram jouissance. E, assim sendo, convidam a um questionamento do mundo que nos rodeia, à abertura a novas perspectivas e à formulação de ideias alternativas. Todas as citações escolhidas, cosidas à mão no próprio suporte das obras, têm um pendor crítico ou ontológico — não se deixem enganar pela candura macia de tecidos e linhas.
Não nos esqueçamos: “Texto quer dizer tecido.”[2] Aqui, não se trata de um produto acabado, urdido à justa, mas de um texto vasto que se completa a cada dia, a cada encontro. Os fragmentos que Alexandra de Pinho reúne — palavras, retalhos, botões, missangas, cós — evocam precisamente esse trabalho contínuo e precário de construir significados. Parecem sussurrar: há um corpo que esteve aqui agora mesmo. Como escrevi algures sobre estas obras, as roupas são, desde o momento que nos cortam o cordão umbilical, a nossa segunda pele perante o mundo. É sob tecidos que trabalhamos, dormimos, amamos, embalamos os nossos filhos e enterramos os nossos mortos. E também foi exclusivamente sobre fibras orgânicas que, durante muito tempo, lemos e escrevemos.
A reflexão sobre o corpo humano ocupa um papel marcante na obra de Alexandra de Pinho — e, curiosamente, a sua representação óbvia está ausente neste conjunto de trabalhos. Mas não estar representado não significa não estar presente. Simbolicamente, o corpo que frui está aqui desde o processo da criação da obra. E hoje, nesta exposição, que mais não é do que o desejo de novos encontros, o texto continua a ser tecido por todos nós.
Andréia Azevedo Soares
Jornalista do Público
[1] BARTHES, Roland. O prazer do texto (1973), Editora Perspectiva, São Paulo, 1987, p. 25.
[2] BARTHES, Roland. O prazer do texto (1973), Editora Perspectiva, São Paulo, 1987, p. 82.
Jornalista